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Atribulações de uma formiga em Telheiras

    A formiga ia no seu caminho, determinada, laboriosa, empenhada, discreta, como sempre. Era preciso contribuir com a sua pequena parte para a grande obra universal do formigueiro.

    O formigueiro ficava bem perto do Centro Comunitário de Telheiras e os velhinhos, de mãos trémulas, sempre deixavam cair umas migalhas no chão, tão valiosas para o sustento da comunidade!

    A meio do caminho, porém, a chuva começou a cair. Uma chuva inclemente, daquelas de que se diz “Abriram os penicos do céu!”. O bichinho cansado, com água já pelas goelas, os pés encharcados dentro das galochas, conseguiu subir para cima de uma folha. Mas quê!?! A folha também foi correndo à frente do riacho que se formou com tanta chuva.

    Dentro da sua jangada, a formiga não perdeu a cabeça. Os pés estavam molhados, sim, mas a cabeça estava fria, capacitada para manter a calma, para raciocinar e pensar numa solução salvífica. Respirou fundo, descontraiu cada uma das partes do seu corpo, mentalmente alisou a testa, como se preocupação alguma a afectasse!

    A folha no seu percurso foi-se juntando a outras folhas, porque o Outono encarrega-se sempre de cobrir o chão com esses tapetes de tons acastanhados. E a nossa amiga, uma lutadora, uma sobrevivente, encontrou, nesse amontoado, uma ponte para sair da sua situação embaraçosa.

    Antenas no ar, logo se cruzou com outras companheiras, com quem habitualmente partilha cumprimentos, tarefas, alegrias e preocupações. No linguajar das formigas, mais antigo do que o do Antigo Egipto, percebeu rapidamente, perspicaz como era, que tinha viajado pela Rua Gentil Martins abaixo e estava quase à saída do Metro.

    Pois bem!! Não há que perder tempo. Até ao formigueiro há que puxar pelas pernas, mas, Que Diabo! são várias. Não custará tanto assim. E, pelo trajecto decerto encontrará alguma guloseima para encher a despensa para o Inverno que aí vem!

    – E o formigueiro terá ficado alagado? – pensou a formiga, agora sim, aflita.

    Foi nessa altura que deixou para trás o objectivo do dia, apanhou boleia de uma trotineta e veio, rapidamente e em força, ajudar as amigas a enxugar o condomínio!

    Uma desgraça nunca vem só, sobretudo, para quem vive nas caves ou nas águas furtadas. A classe média nem se dá conta, não vê, não quer saber e tem raiva a quem sabe! Quem olha para as formigas? Quem se incomoda com elas? Olhem que não foi fácil tirar a água de todos aqueles corredores, cubículos e vãos de escada! Foi muito para trás e para diante! E não era uma, eram todas as formigas! E, retirada a água, que restava? Recipientes cheios de migalhas empapadas!

    – Podia-se fazer umas migas! – lembrou-se uma delas que tinha vindo do Alentejo, clandestina, no carro do Doutor Joaquim.

    Mas não era um projecto viável. Faltavam ingredientes essenciais, nomeadamente o alho e os coentros.

    – Dias de fome! É o que nos espera! – sentenciou outra, pessimista.

    – É o Diabo que vem aí outra vez! – opinou outra, mais politizada.

    Contudo a formiga, a heroína inicial desta história, a quem nem demos nome, nem tão pouco atribuímos género, mantendo a fleuma, alcançada a equanimidade, inflamada pela sua própria coragem e pela desgraça de todo o seu povo, tomou a palavra para trazer alento e esperança a todas as suas irmãs:

    -Queridas amigas e camaradas de luta! Desde os confins do tempo que a nossa sobrevivência depende da nossa união! Não é altura para desânimos, nem medos futuros! Os nossos livros de História estão cheios de exemplos de como sempre resistimos a todos os infortúnios. Vamos pôr mãos à obra com redobrada força! Com a força de toda a nossa alma! E virá o dia para nós, formigas, mais numerosas que chineses ou muçulmanos, que viveremos dias felizes e tranquilos!

    E continuou, depois de engolir um pouco de água que era coisa que não faltava por ali:

    – Não esqueçais que a nossa morada se situa num bairro privilegiado de Lisboa, onde há mais licenciados por metro quadrado do que folhas nas árvores. E quem vive perto de gente letrada como nós tem os conhecimentos e aptidões para acreditar no progresso!

    Foi um discurso apoteótico! A importância daquela formiga cresceu de entre as demais! A calma instalou-se no formigueiro que acatou a mensagem desta oratória já nossa conhecida, de tão batida nos media!

    Cada uma das formigas, ciente do seu papel e da sua importância, deixou para trás as lamúrias e iniciou o trabalho de reconstrução, ou, melhor dizendo, de reestruturação da sociedade e da economia do formigueiro de Telheiras.

    E a nossa amiga formiga em vez de obreiras passou a ter, junto de si e sob a sua orientação, formigas colaboradoras!

    Escrito por Ana Amorim

    Fotografia: Christian Lischka SJ, Unsplash


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